PERFIL – Uma Mulher Fora do Programa

SHEYLA DE AZEVEDO
DO NOVO JORNAL

MARCAMOS PARA O final da tarde. Cinco minutos depois da hora combinada, ela liga com uma fleuma discreta, avisando que vai chegar “um pouco atrasada”, como quem pede desculpas pelo trânsito ruim e pelo fato de ter praticamente atravessado a cidade de um ponto a outro, para chegar ao local marcado: o Nalva Melo Café Salão. Lugar que tanto serve para palco de suas performances, quanto para esteio de suas ideias, já que Nalva Melo, a dona, é também uma grande amiga.

“A minha vida é mais ou menos atrapalhada porque eu sou muito atrapalhada”, vai logo dizendo assim que chega, uns 25 minutos fora do combinado, enquanto pede um café grande “pingado” e uma água com gás. Civone Medeiros, 38, pouco mais de 50 quilos em 1,63 metro, pele branca, olhos expressivos, cabelos castanhos escuros, quase sempre com um cigarro passeando pelos dedos e lábios, pode até ser meio atrapalhada, mas é muito mais do que possa falar – e ela fala – porque é, sobretudo, uma moça das letras. Eu não estou à frente da minha poesia/ eu não estou dentro da minha poesia./ A verdade é que eu sou a poesia (Adentro – Escrituras Sangradas 2009). Ou uma mulher que tem coragem de se despir – “nunca ficar nua”, faz questão de diferenciar - para deixar o corpo esculpir a mensagem que quer passar. Como ela própria se define em seu site (www.naredecomcivone.blogspot.com) é “multiartista, poeta, performer, produtora cultural e curadora. ARTivista e CyberPunk. Trabalha com internet, cinema/vídeo, cenários, moda, performances e intermídias. Vive em Natal e trabalha no Mundo”.

A filha de Cícero, já falecido, e dona Ivone, mãe de Bianca, 15, não terminou a 8a série. Mas a falta de vivência escolar foi suprida pela inquietação de viver. Cinco anos na Áustria – país para onde se mudou em 1999 com a filha pequena – lhe renderam para início de conversa a segunda língua, o alemão.“A língua alemã é totalmente imagética”, explica o que lhe deu a chance de desenhar na mente as palavras que estava absorvendo na época do aprendizado. Além disso, compreende inglês e lê francês.

“A minha educação afetiva foi dada pelos amigos”, revela em meio a uma informação qualquer anterior, que parecia a mais trivial. Para em seguida explicar que o pai era mecânico da Volkswagen, e a mãe possuía uma força interiorana que a fez sair do analfabetismo no interior do Estado para se tornar professora primária na capital. Mas em casa não tinha muito afeto, abraço, aconchego. Daí essa necessidade desde cedo de abraçar o mundo, a rua, conhecer a noite e seus seres.

Antes do enlace matrimonial com as palavras, Civone Medeiros flertou com o balé clássico e o teatro. Este segundo sob a batuta de Véscio Lisboa. Mas achava tudo muito paradão. Ensaiar meses, depois repetir aquele texto inúmeras vezes nos palcos não lhe prenderam por muito tempo. Em 1994 se “encontrou” na Arte Visual e na escrita. O teatro lhe permitiu um domínio de palco que ela levou para a vanguarda de suas performances. Atividade artística que lá no início dos anos 1990 chamara a atenção do jornalista e escritor Paulo Augusto Queiros, que certa vez teria escrito que Civone Medeiros “é uma garota fora do programa”. Aliás, tendo ou não intenção de ser profético, Paulo Augusto enveredava por uma característica intrínseca do trabalho da artista: estar à margem. Principalmente se isso significasse que ela estaria longe do convencional e da mediocridade. “Nunca fiz trabalho bonitinho. Que fosse para agradar”, diz a poeta que já lançou a exposição Privatesfera, uma instalação na qual ela mostra peças íntimas suas e de sua família. “Podem até pensar que é, mas não é fácil nada. Me dói e eu sei que pago caríssimo por romper esse hímen que a sociedade me impõe”. Claro que também tem trabalhos que ela faz que são divertidos e plasticamente agradáveis aos olhos do espectador. Como o recente ensaio fotográfico clicado pelo profissional Flávio Aquino, no qual Civone Medeiros empresta o corpo e a alma para encarnar Janis Joplin, que o leitor pode ver em algumas fotos que ilustram esta reportagem.

Durante um tempo, a “rebeldia” inata seja nas performances, na forma peculiar de escrever e de expor ao mundo suas opiniões lhe rendeu uma certa, digamos, “geladeira” por parte dos jornais locais. No ano 2000 Civone Medeiros foi responsável porum projeto que levou dezenas de artistas potiguares para aquele país, onde puderam mostrar a arte produzida no Estado. Ela conta que enquanto viveu na Áustria tentava acompanhar o que estava acontecendo em Natal e se deparava com informações sobre bandas e atores que traziam peças teatrais enlatadas de outros locais, por exemplo, e não encontrava o mesmo espaço para o que os artistas do Rio Grande do Norte produziam. Foi quando ela fez o seguinte comentário que causou polêmica: “O Viver é a morte e o Muito é pouco”, referindo-se aos dois cadernos culturais, respectivamente, da Tribuna do Norte e do Diário de Natal.

Mas a falta de espaço nos veículos convencionais de informação nunca lhe pareceu um problema: “Aprendi a me virar sozinha – e dá uma gargalhada rouca – tenho uma porção de blogues e sites, como o Na Rede com Civone, o trabalho com os postais, o programa de entrevistas com pessoas de distintas expressões”, sai enumerando as ações que circulam pela internet e não deixam sua produção artística no escuro da desinformação. Além do trabalho de poeta, Civone Medeiros atualmente colabora na ONG ICAP - Instituto Cultural e Audiovisual Potiguar (Ecos do Bairro), e trabalha com tecnologia da informação dentro da gestão pública, sob o novíssimo conceito de transparência. “É um serviço de desenvolvimento de softwares que automatiza e publiciza a contabilidade pública”, resume.

Intensa e sem papas na língua, depois de revelar fatos como a vinda da filha Bianca ao mundo, depois que ela tomou a decisão de não fazer mais aborto; que encontrou o ex-marido – opressor e machista – na cama com outro homem, o que a fez sair de casa, sempre na busca de ser “a protagonista” de sua própria história, e sendo permissiva com as indagações dos outros, tem perguntas que ela não perdoa: “certa vez um repórter me perguntou se as pessoas me consideravam muito „doidona‟. Aquilo me arrepiou toda. Eu disse a ele, pergunte a elas! Mas esse tipo de rótulo pode ser porque eu assumo meus atos. Não faço jogo, não tenho necessidade de ser conveniente. É difícil viver numa sociedade – impregnada de regras – na qual o cabelo não pode estar assanhado, você não pode não ter colocado perfume. Eu só sei que só quero dizer a minha verdade. Ser eu mesma e pagar o preço. "Eu quero ser consumida por quem quer me consumir”, desabafa. Não quero uma obra/ que tenha valor/ de mercado./ Quero uma obra que tenha valor de expressão. O poema Humana Ambição (Escrituras Sangradas Ave de Arribaçã ou a Propósito de Viena e Outros Ondes) parece traduzir esse sentimento.

E que consumir jamais se confunda com consumar. Porque Civone Medeiros embora às vezes admita uma certa fragilidade até mesmo física – pelas noitadas que já desfrutou – parece que não vai parar tão cedo de fazer arte e de sentir um “alívio são” de ter se expressado, se comunicado, seja com a voz, o corpo ou com os olhos com seu interlocutor.


1ª Edição em 4/06/2010 } http://www.novojornal.jor.br/
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2ª Edição em 17/11/2010 } Edição Especial de 1 Ano do NOVO JORNAL }


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